terça-feira, 2 de abril de 2013

MÍSTICA, ÉTICA E ECOSOFIA

Frei Betto

Há estreito vínculo entre religião e ecologia. Os calendários litúrgicos refletem os ciclos da natureza. Toda religião expressa o contexto ambiental que lhe deu origem.

Os hebreus e, em geral, os povos semitas, viviam em regiões inóspitas, desérticas, o que os levou a desenvolver o senso do sagrado centrado na transcendência. Onde a natureza é exuberante, como nos trópicos, se acentuou a imanência do sagrado. Todo o entorno geográfico e climático influi na relação religiosa que se tem com a natureza.

O cristianismo teve sua origem em áreas urbanas. Via a natureza à distância, como algo estranho e adverso. A palavra pagão, que englobava todos os não cristãos, significa etimologicamente “habitante do campo”.

Todas as tradições religiosas indígenas mantêm estreito vínculo com a natureza. São teocósmicas, o divino se manifesta no cosmo e em seus componentes, como a montanha (Pachamama). 

Hinduísmo e taoísmo cultuam a natureza. Já o confucionismo e o budismo são tradições mais antropocêntricas, voltadas à consciência e às virtudes humanas.

O islamismo mantém uma relação singular com a natureza. É uma religião semítica, cultua a transcendência de Alá, mas conserva, como o judaísmo, estreito vínculo com o entorno ambiental, o que se reflete na distinção entre alimentos puros e impuros, jejum, cuidado com a higiene pessoal etc.

As religiões aborígenes (ab-origem = que estão na origem de todas as outras) não separam o humano da natureza. Há um forte sentido de equilíbrio e reciprocidade entre o ser humano e a Terra. O que dela se tira a ela deve ser devolvido. 

Entre as grandes tradições religiosas é o hinduísmo que melhor cultiva essa harmonia. Toda a Índia respira veneração sagrada por rios, animais, árvores e montanhas. A veneração pelas vacas reflete esse senso de equilíbrio, pois se trata de um animal do qual se obtém muitos produtos, do leite e seus derivados ao esterco como fertilizante, e isso é mais importante do que comê-las.

Três grandes desafios, segundo o místico catalão Javier Melloni, estão inter-relacionados: a interioridade, a solidariedade e a sobriedade. A interioridade nos impele à via mística; a solidariedade, à ética; e a sobriedade à preservação ambiental. 

Nossa civilização estará condenada à barbárie se as pessoas perderem a capacidade de interiorização, de fazer silêncio, de meditar, de modo a saber escutar as necessidades do próximo (solidariedade) e o grito agônico da Terra (sobriedade). 

Urge submeter a ecologia à ecosofia, a sabedoria da Terra, na expressão de Raimon Panikkar. Não se trata de impor a razão humana sobre a natureza (eco-logos), mas sim de dar ouvidos à sabedoria da Terra, captar o que ela tem a nos dizer com seus ciclos, suas mudanças climáticas e até com suas catástrofes.

Embora haja avanços em nosso comportamento, graças ao crescimento da consciência ecológica (reciclagem, uso da água, produtos ecologicamente corretos etc), ainda estamos atrelados a um modelo civilizatório altamente nocivo à saúde de Gaia e dos seres humanos.

Continuamos a consumir combustíveis escassos e poluentes e, na contramão de todo o movimento ecológico, submergimos à onda consumista que produz, a cada dia, perdas significativas da biodiversidade e toneladas de lixo derivado de nosso luxo.

Três grandes mentiras precisam ser eliminadas de nossa cultura para que o futuro seja ecologicamente viável e economicamente sustentável: 1) Os recursos da Terra não são suficientes para todos; 2) Devo assegurar os meus recursos, ainda que outros careçam dos mesmos; 3) O sistema econômico que predomina no mundo, centrado na lógica do mercado, e o atual modelo civilizatório, de acumulação de bens, são imutáveis. 

Nosso planeta produz, hoje, alimentos suficientes para 12 bilhões de pessoas, e é habitado por 7 bilhões. Portanto, não há excesso de bocas, há falta de justiça.

Não haverá futuro digno para a humanidade sem uma economia de partilha e uma ética da solidariedade.

Durante milênios povos indígenas e tribos desenvolveram formas de convivência baseada na sustentabilidade, na harmonia com a natureza e com os semelhantes. Como considerar ideal um modelo civilizatório que, dos 7 bilhões de habitantes do planeta, condena 4 bilhões a viverem na pobreza ou em função de suas necessidades animais, como se alimentar, abrigar-se das intempéries e educar as crias?


Frei Betto é escritor, autor do romance “Aldeia do Silêncio”, que a Editora Rocco faz chegar às livrarias este mês.

Descontrole
Naquele dia de sol, Mário chegou feliz e estacionou o reluzente caminhão em frente à porta de sua casa. Após 20 anos de muita economia e intenso trabalho, sacrificando dias de repouso e lazer, ele conseguiu.
Comprou um caminhão. Orgulhoso, entrou em casa e chamou a esposa para ver a sua aquisição. A partir de agora, seria seu próprio patrão.
Ao chegar próximo do caminhão, uma cena o deixou descontrolado. Seu filho de apenas 6 anos estava martelando alegremente a lataria do caminhão.
Irritado e aos berros, ele investiu contra o filho.
Tomou o martelo das mãos dele e, totalmente fora de controle, martelou as mãozinhas do garoto.
Sem entender o que estava acontecendo, o menino se pôs a chorar de dor, enquanto a mãe interferiu e retirou o pequeno da cena.
Na seqüência, ela trouxe o marido de volta à realidade e juntos levaram o filho ao hospital, para fazer curativos.
O que imaginavam, no entanto, fosse simples, descobriram ser muito grave. As marteladas nas frágeis mãozinhas tinham feito tal estrago que o garoto foi encaminhado para cirurgia imediata.
Passadas várias horas, o cirurgião veio ao encontro dos pais e lhes informou que as dilacerações tinham sido de grande extensão e os dedinhos tiveram que ser amputados.
De resto, falou o médico, a criança era forte e tinha resistido bem ao ato cirúrgico. Os pais poderiam aguarda-lo no quarto para onde logo mais seria conduzido.
Com um aperto no coração, os pais esperaram que a criança despertasse. Quando, finalmente, abriu os olhos e viu o pai o menino abriu um sorriso e falou:
"Papai, me desculpe, eu só queria consertar o seu caminhão, como você me ensinou outro dia. Não fique bravo comigo."
O pai, com lágrimas a escorrer pela face, em desconsolo, se aproximou mais e lhe disse que não tinha importância o que ele havia feito.
Mesmo porque, a lataria do caminhão nem tinha sido estragada.
O menino insistiu: "quer dizer que não está mais bravo comigo?"
"Não, mesmo", falou o pai.
"Então", perguntou o garoto, "se estou perdoado, quando é que meus dedinhos vão nascer de novo?"
***
Toda vez que perdemos a calma, perdemos também a lucidez e o bom senso. Nesses momentos, podemos cometer muitas tolices.
E quando investimos contra as criaturas que amamos, podemos machuca-las muito. Podemos feri-las com palavras e com atos.
E, em se tratando de crianças, que são frágeis e ficam indefesas frente ao descontrole dos adultos, tudo assume maior gravidade.
Jamais nos permitamos a ira, que é sempre má companhia. Domemos as nossas más tendências e nossos impulsos agressivos, recordando que nada na vida é mais precioso do que as pessoas.
As coisas que possamos adquirir nos servirão por algum tempo, mas, somente os nossos amores estarão conosco sempre, não importando o local ou as condições que venhamos a nos encontrar.
Preservemos a calma e ofertemos para aqueles que são os sóis das nossas vidas somente o carinho, a ternura e as doces manifestações do amor.
Equipe Redação do Momento Espírita, a partir de texto intitulado não vale chorar, de autoria desconhecida da equipe.