quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Como lidar com o desejo infinito?, por Leonardo Boff

O desejo não é um impulso qualquer. É um motor que põe em marcha toda a vida psíquica. Ele goza da função de um princípio, traduzido pelo filósofo Ernst Bloch por princípio esperança. Por sua natureza, não conhece limites como já foi visto por Aristóteles e por Freud. A psiqué não deseja apenas isto ou aquilo. Ela deseja a totalidade. Não deseja a plenitude do homem, procura o super-homem, aquilo que ultrapassa infinitamente o humano como afirmava Nietzsche. O desejo se apresenta infinito e confere o caráter de infinito ao prejo humano.

O desejo torna dramática e, por vezes, trágica a existência. Mas também, quando realizado, uma felicidade sem igual. Estamos sempre buscando o objeto adequado ao nosso desejo infinito. E não o encontramos no campo da experiência cotitidiana. Aqui somente encontramos finitos.

Produz grave desilusão quando o ser humano identifica uma realidade finita como sendo o objeto infinito buscado. Pode ser a pessoa amada, uma profissão sempre ansiada, a casa dos sonhos. Chega o momento que, geralmente, não tarda muito em perceber uma insatisfação de base e sentir o desejo por algo maior.

Como sair deste impasse, provocado pelo desejo infinito? Borboletar de um objeto a outro, sem nunca encontrar repouso? Temos que nos colocar seriamente na busca do verdadeiro objeto de nosso desejo. Entrando in medias res, vou logo respondendo: este é o Ser e não o ente, é o Todo e não a parte, é Infinito e não o finito. Depois de muito peregrinar, o ser humano é levado a fazer a experiência do cor inquietum (coração inquieto) de Santo Agostinho: Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova.Tarde de te amei. Meu coração inquieto não descansará enquanto não respousar em Ti. Só o Infinito Ser se adequa ao desejo infinito do ser humano e lhe permite descansar.

O desejo envolve energias vulcânicas poderosas. Como lidar com elas? Antes de mais nada, se trata de acolher, sem moralizar, esta condição desejante. As paixões puxam o ser humano para todos os lados. Algumas o atiram para a generosidade e outras para o egocentrismo. Integrar, sem recalcar tais energias, exige cuidado e não poucas renúncias.

A psiqué é convocada a construir uma síntese pessoal que é a busca do equilíbrio de todas as energias interiores. Nem fazer-se vítima da obsessão por uma determinada pulsão, como por exemplo, a sexualidade, nem recalcá-la como se fosse possível emasculhar-lhe o vigor. O que importa é integrá-la como expressão de afeto, de amor e de estética e mantê-la sob vigilância pois temos a ver com uma energia vital não totalmente controlável pela razão mas por vias simbólicas de sublimação e por outros propósitos humanísticos. Cada um deve aprender a renunciar no sentido de uma ascese que liberta de dependências e cria a liberdade interior,um dom dos mais apreciáveis.

Outra forma de lidar com o desejo infinito é pela precaução que nos previne des ciladas da própria vulnerabilidade humana. Não somos onipotentes, nem deuses, inatingíveis ao fracasso. Podemos mostrar-nos fracos e, por vezes, covardes. Mas podemos precaver-nos contra situações que nos poderão fazer cair e perder o Centro.

Talvez uma chave inspiradora nos seja nos oferecida por C.G.Jung com sua proposta de construir, ao largo da vida, um processo de individuação. Este possui uma dimensão holística: assume com destemor e humildade todas as pulsões, imagens, arquétipos, luzes e sombras. Ouve o rugir das feras que o habitam mas também o canto do sabiá que o encanta. Como criar uma unidade interior cujo efeito seja o equilíbrio dos desejos, a vivência da liberdade e da alegria de viver?

C. G. Jung sugere que cada um procure criar um Centro forte, um Self unificador que tenha a função que o sol possui no sistema solar. Ele sateliza ao seu redor todos os planetas. Algo semelhante deve ocorrer com a psiqué: alimentar um Centro pessoal que tudo integre, com reflexão e com interiorização. E não em último lugar, com o cultivo do Sagrado e do Espiritual. A religião, como instituição, não raro cerceia a vida espiritual por excesso de doutrinas e de normas morais demasiado rígidas. Mas religião como espiritualidade desempenha uma função fundamental no processo de individuação. Cabe a ela ligar e re-ligar a pessoa com seu Centro, com todas as coisas, com o universo, com a Fonte originária de todo o ser, dando-lhe um sentimento de pertença.

A falta da integração da energia do desejo se manifesta pela dilaceração das relações sociais, pela violência assassina praticada em escolas ou nas matanças de pessoas negras, pobres e homoafetivos.
Lidar com as forças do desejo implica, pois, uma preocupação pela sanidade social. Não se poderá passar ao lado da educação humanística, ética e cidadã que eduque o desejo. O grande obstáculo reside na lógica mesma do sistema imperante que exaspera o desejo de ter, descuidando dos valores civilizatórios, da gentileza, do bom trato e do respeito a cada pessoa. Ao contrário, os meios de comunicação de massa exaltam o desejo individual e a violência para resolver os conflitos humanos.

A globalização como fenômeno humano, nos obrigará a moderar os desejos pessoais em favor dos coletivos e assim tornar mais equilibrada e amigável a coexistência humana. Como desejamos tempos favoráveis!

quarta-feira, 15 de junho de 2011

SUSTENTABILIDADE: ADJETIVO OU SUBSTANTIVO? por Leonardo Boff


As empresas, em sua grande maioria, só assumem a responsabilidade socioambiental na medida em que os ganhos não sejam prejudicados e a competição não seja ameaçada. Chegamos a um ponto em que não temos outra saída senão fazer uma revolução paradigmática, senão seremos vítimas da lógica férrea do Capital que poderá nos levar a um impasse civilizatório.

É de bom tom hoje falar de sustentabilidade. Ela serve de etiqueta de garantia de que a empresa, ao produzir, está respeitando o meio ambiente. Atrás desta palavra se escondem algumas verdades mas também muitos engodos. De modo geral, ela é usada como adjetivo e não como substantivo.

Explico-me: como adjetivo é agregada a qualquer coisa sem mudar a natureza da coisa. Exemplo: posso diminuir a poluição química de uma fábrica, colocando filtros melhores em suas chaminés que vomitam gases. Mas a maneira com que a empresa se relaciona com a natureza donde tira os materiais para a produção, não muda; ela continua devastando; a preocupação não é com o meio ambiente mas com o lucro e com a competição que tem que ser garantida. Portanto, a sustentabilidade é apenas de acomodação e não de mudança; é adjetiva, não substantiva.

Sustentabilidade, como substantivo, exige uma mudança de relação para com a natureza, a vida e a Terra. A primeira mudança começa com outra visão da realidade. A Terra está viva e nós somos sua porção consciente e inteligente. Não estamos fora e acima dela como quem domina, mas dentro como quem cuida, aproveitando de seus bens mas respeitando seus limites. Há interação entre ser humano e natureza. Se poluo o ar, acabo adoecendo e reforço o efeito estufa donde se deriva o aquecimento global. Se recupero a mata ciliar do rio, preservo as águas, aumento seu volume e melhoro minha qualidade de vida, dos pássaros e dos insetos que polinizam as árvores frutíferas e as flores do jardim.

Sustentabilidade, como substantivo, acontece quando nos fazemos responsáveis pela preservação da vitalidade e da integridade dos ecossistemas. Devido à abusiva exploração de seus bens e serviços, tocamos nos limites da Terra. Ela não consegue, na ordem de 30%, recompor o que lhe foi tirado e roubado. A Terra está ficando, cada vez mais pobre: de florestas, de águas, de solos férteis, de ar limpo e de biodiversidade. E o que é mais grave: mais empobrecida de gente com solidariedade, com compaixão, com respeito, com cuidado e com amor para com os diferentes. Quando isso vai parar?

A sustentabilidade, como substantivo, é alcançada no dia em que mudarmos nossa maneira de habitar a Terra, nossa Grande Mãe, de produzir, de distribuir, de consumir e de tratar os dejetos. Nosso sistema de vida está morrendo, sem capacidade de resolver os problemas que criou. Pior, ele nos está matando e ameaçando todo o sistema de vida.

Temos que reinventar um novo modo de estar no mundo com os outros, com a natureza, com a Terra e com a Última Realidade. Aprender a ser mais com menos e a satisfazer nossas necessidades com sentido de solidariedade para com os milhões que passam fome e com o futuro de nossos filhos e netos. Ou mudamos, ou vamos ao encontro de previsíveis tragédias ecológicas e humanitárias.

Quando aqueles que controlam as finanças e os destinos dos povos se reúnem, nunca é para discutir o futuro da vida humana e a preservação da Terra. Eles se encontram para tratar de dinheiros, de como salvar o sistema financeiro e especulativo, de como garantir as taxas de juros e os lucros dos bancos. Se falam de aquecimento global e de mudanças climáticas é quase sempre nesta ótica: quanto posso perder com estes fenômenos? Ou então, como posso ganhar comprando ou vendendo bônus de carbono (compro de outros países licença para continuar a poluir)? A sustentabilidade de que falam não é nem adjetiva, nem substantiva. É pura retórica. Esquecem que a Terra pode viver sem nós, como viveu por bilhões de anos. Nós não podemos viver sem ela.

Não nos iludamos: as empresas, em sua grande maioria, só assumem a responsabilidade socioambiental na medida em que os ganhos não sejam prejudicados e a competição não seja ameaçada. Portanto, nada de mudanças de rumo, de relação diferente para com a natureza, nada de valores éticos e espirituais. Como disse muito bem o ecólogo social uruguaio E. Gudynas: "a tarefa não é pensar em desenvolvimento alternativo, mas em alternativas de desenvolvimento”.

Chegamos a um ponto em que não temos outra saída senão fazer uma revolução paradigmática, senão seremos vítimas da lógica férrea do Capital que nos poderá levar a um fenomenal impasse civilizatório.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Paracatu e o voo do pica-pau, por Almir Paraca (*)


Nas discussões do Plano de Desenvolvimento Sustentável de Paracatu, em diversas ocasiões, salientei a necessidade imperiosa de se conhecer a história do município, para despertar a consciência da artificialidade e transitoriedade da dinâmica sócio-econômica produzida pela mineração. Para ilustrar o movimento sazonal, oscilatório – no popular: o sobe e desce de uma determinada variável ao longo de tempo, como vem acontecendo com a dimensão sócio-econômica da cidade de Paracatu, ao longo da sua história, utilizo uma imagem imortalizada pelo Guimarães Rosa: “pica-pau voa é duvidando do ar”. Todos aqueles que já tiveram o privilégio de observar o voo do pica-pau, o majestoso pássaro brasileiro em sua trajetória oscilatória, que lembra um movimento de onda, percebem a exatidão da imagem para traduzir as variações sócio-econômicas da história de Paracatu. A cidade nasce no ciclo do ouro, nos tempos do Brasil colônia e da escravidão e, apesar da abusiva transferência de renda para a metrópole portuguesa (situação que hoje se repete como farsa histórica na relação com a mineradora canadense Kinross), assiste a um período de vigor e pujança sócio-econômica, transformando-se num importante núcleo urbano, com sua elite econômica e cultural adotando elevado padrão de vida copiado das elites europeias.

Como é próprio da atividade minerária, esta se esgotou e, com ela, a elevada dinâmica socioeconômica, que assiste a um longo período de depressão e decadência. Somente com a construção da capital federal, no sertão do país, é que Paracatu começa a acordar da sua dormência indolente e começa a se levantar.

Um novo impulso ocorre nos anos 1970, com os projetos de ocupação do cerrado, acompanhado do pacote tecnológico que introduz o que veio a ser denominado de agronegócio, modernizando as relações sócio-produtivas no meio rural, implantando os assentamentos rurais empresariais, em substituição aos latifúndios improdutivos e à economia de subsistência – até então reinantes. Essa trajetória ascendente recebe nova energia com o retorno da mineração nos anos 1980, que passa rapidamente do garimpo artesanal para a exploração pelas grandes e predatórias mineradoras multinacionais.

Mais recentemente, a dinâmica socioeconômica local foi impactada positivamente pelos investimentos nos empreendimentos de ensino técnico e superior, em sintonia com a exigência, pelo mercado, de mão-de-obra qualificada para a demanda de expansão e desenvolvimento da economia nacional.

Se, hoje, no município, vivemos um momento de exuberância econômica, com forte crescimento dos setores de serviço e comércio e uma, ainda tímida, industrialização – derivados dos fatores acima descritos – é fundamental recuperar a visão histórica e projetá-la para o futuro. A visão histórica rompe com o fatalismo e recupera a noção de processo, de construção; e atualiza a percepção da forte participação da mineração na economia local e, portanto, dos grandes impactos que virão com a eminente exaustão dos estoques minerários.
A já evocada imagem do voo do pica-pau nos mostra que o município, hoje, encontra-se no topo de um ciclo ascendente e, ainda, que o esgotamento da atividade minerária provocará, como no passado conhecido, um novo ciclo descendente que, só não terá similar impacto negativo, caso tenhamos aprendido a lição da história e, previdentes, adotarmos medidas que promovam o desenvolvimento sustentável local.

No debate em curso tenho, insistentemente, defendido a elaboração e a implementação do plano de desenvolvimento sustentável, com intensa participação dos diversos segmentos sociais. Um plano que promova o incremento das vocações locais, a partir das energias endógenas e diversifique as atividades produtivas: condições decisivas para diminuir os impactos negativos do fim da mineração no município.

O voo do pica-pau, ao resgatar o aprendizado da nossa história, nos chama a todos à responsabilidade pelo futuro comum. No passado, o final do primeiro ciclo do ouro levou à decadência – certamente por ignorância e falta de alternativas. Hoje devemos nos preparar, preventivamente, para encarar, de frente, o fim óbvio do atual ciclo do ouro, tanto do ponto de vista ambiental, quanto do socioeconômico.

Insisto em não perder as esperanças. A natureza ensina e somos aprendizes. Que voe o pica-pau e a consciência se eleve.

(*) Almir Paraca é deputado estadual à Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais pelo Partido dos Trabalhadores.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

UM NOVO CREDO – por Frei Betto

Creio no Deus desaprisionado do Vaticano e de todas a religiões existentes e por existir. Deus que precede todos os batismos, pré-existe aos sacramentos e desborda de todas as doutrinas religiosas. Livre dos teólogos, derrama-se graciosamente no coração de todos, crentes e ateus, bons e maus, dos que se julgam salvos e dos que se crêem filhos da perdição, e dos que são indiferentes aos abismos misteriosos do pós-morte.
 
Creio no Deus que não tem religião, criador do Universo, doador da vida e da fé, presente em plenitude na natureza e nos seres humanos. Deus ourives em cada ínfimo elo das partículas elementares, da requintada arquitetura do cérebro humano ao sofisticado entrelaçamento do trio de quarks.

Creio no Deus que se faz sacramento em tudo que aproxima, atrai, enlaça, abraça e une – o amor. Todo amor é Deus e Deus é o real. Em se tratando de Deus, bem diz Rumî, não é o sedento que busca a água, é a água que busca o sedento. Basta manifestar sede e a água jorra.

Creio no Deus que se faz refração na história humana e resgata todas as vítimas de todo poder capaz de fazer o outro sofrer. Creio em teofanias permanentes e no espelho da alma que me faz ver um Outro que não sou eu. Creio no Deus que, como o calor do sol, sinto na pele, sem no entanto conseguir fitar ou agarrar o astro que me aquece.

Creio no Deus da fé de Jesus, Deus que se aninha no ventre vazio da mendiga e se deita na rede para descansar dos desmandos do mundo. Deus da Arca de Noé, dos cavalos de fogo de Elias, da baleia de Jonas. Deus que extrapola a nossa fé, discorda de nossos juízos e ri de nossas pretensões; enfada-se com nossos sermões moralistas e diverte-se quando o nosso destempero profere blasfêmias.

Creio no Deus que, na minha infância, plantou uma jabuticabeira em cada estrela e, na juventude, enciumou-se quando me viu beijar a primeira namorada. Deus festeiro e seresteiro, ele que criou a lua para enfeitar as noites de deleite e as auroras para emoldurar a sinfonia passarinha dos amanheceres.

Creio no Deus dos maníacos depressivos, das obsessões psicóticas, da esquizofrenia alucinada. Deus da arte que desnuda o real e faz a beleza resplandecer prenhe de densidade espiritual. Deus bailarino que, na ponta dos pés, entra em silêncio no palco do coração e, soada a música, arrebata-nos à saciedade.
Creio no Deus do estupor de Maria, da trilha laboral das formigas e do bocejo sideral dos buracos negros. Deus despojado, montado num jumento, sem pedra onde recostar a cabeça, aterrorizado pela própria fraqueza.

Creio no Deus que se esconde no avesso da razão atéia, observa o empenho dos cientistas em decifrar-lhe os jogos, encanta-se com a liturgia amorosa de corpos excretando sumos a embriagar espíritos.

Creio no Deus intangível ao ódio mais cruel, às diatribes explosivas, ao hediondo coração daqueles que se nutrem com a morte alheia. Misericordioso, Deus se agacha à nossa pequenez, suplica por um cafuné e pede colo, exausto frente à profusão de estultices humanas.

Creio sobretudo que Deus crê em mim, em cada um de nós, em todos os seres gerados pelo mistério abissal de três pessoas enlaçadas pelo amor e cuja suficiência desbordou nessa Criação sustentada, em todo o seu esplendor, pelo frágil fio de nosso ato de fé.

Frei Betto é escritor, autor de “A Obra do Artista – uma visão holística do Universo” (Ática), entre outros livros.

sexta-feira, 11 de março de 2011

AUTORIZAÇÃO AMBIENTAL DE FUNCIONAMENTO (DN COPAM 74/2004) E VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO: UMA INCONSTITUCIONALIDADE FLAGRANTE E PERIGOSA, por Marcos Paulo de Souza Miranda (*)

Conforme o caso, a Administração Pública pode ser, a um só tempo, elemento mortal ou vital à proteção ambiental: cabe-lhe, via de regra, o poder de preservar ou mutilar o meio ambiente. Assim, na medida em que compete à Administração Pública o controle do processo de desenvolvimento, nada mais perigoso para a tutela ambiental do que um administrador absolutamente livre ou que não sabe utilizar a liberdade limitada que o legislador lhe conferiu.

(Antônio Herman V. Benjamin. Os princípios do estudo de impacto ambiental como limites da discricionariedade administrativa).


Como se sabe, o ordenamento jurídico brasileiro, por força do princípio da prevenção, exige a elaboração de estudo prévio de impacto ao meio ambiente (EPIA) para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental (art. 225, § 1º, IV da CF/88; arts. 9º, III e IV, 10, caput, da Lei 6.938/81; art. 17 do Decreto 99274/90). Os objetivos básicos desse instrumento são: a) a prevenção de danos ambientais; b) a transparência administrativa quanto aos efeitos ambientais de um determinado projeto; c) a consulta aos interessados; e d) propiciar decisões administrativas informadas e motivadas1.
Seja qual for a modalidade e a complexidade dos estudos (EIA/RIMA; RCA/PCA; RAIAS;
RAP; PRAD etc.) é fato incontroverso que eles tratam de aspectos ambientais relacionados à localização, instalação, operação ou ampliação de uma atividade ou empreendimento, sendo apresentados ao Poder Público como subsídio para a análise da concessão ou não do ato autorizativo requerido (art. 1º., III – Res. CONAMA 237/2007).

Como os estudos se destinam à apreciação, análise, mensuração e compreensão dos impactos ambientais, a fim de verificar a viabilidade do empreendimento proposto, alguns requisitos são ditados de maneira cogente pela normatização federal (v.g. art. 7º, I, do Decreto 99274/90) e deles não podem se afastar os Estados e Municípios, sob pena de evidente insubordinação legiferante e afronta ao texto constitucional, negando, em última análise, a aplicação do próprio princípio da prevenção.

Alguns desses aspectos obrigatórios2 para todos os estudos ambientais são:
a) descrição da ação proposta, suas alternativas, localização e breve descrição das características ambientais do local e seu entorno;
b) o anúncio público da intenção de se realizar o projeto;
c) identificação, análise e previsão dos impactos significativos, positivos e negativos (art. 17 do Decreto 99.274/90), com as correspondentes medidas mitigadoras;
d) certidão da Prefeitura Municipal, declarando que o local e o tipo de empreendimento ou atividade estão em conformidade com a legislação aplicável ao uso e ocupação do solo (art. 10, § 1º da Resolução CONAMA 237/97);
e) comprovação de habilitação técnica e anotação de responsabilidade dos profissionais incumbidos da elaboração dos estudos e pelo empreendimento (art. 11 da Resolução CONAMA 237/97).
f) programa de acompanhamento e monitoramento de impactos.

Obviamente que a definição sobre a exigência para o caso concreto de um estudo ambiental mais complexo e pormenorizado (v.g. EIA/RIMA) ou mais simplificado (v.g. Relatório Ambiental Preliminar – RAP), ou mesmo para a dispensa do processo de licenciamento ambiental (Relatório de Ausência de Impacto Ambiental Significativo – RAIAS) ocorrerá em observância à natureza, características e peculiaridades da atividade ou empreendimento, podendo ser estabelecidos procedimentos simplificados para as atividades e empreendimentos de pequeno potencial de impacto ambiental (arts. 1º, III; 11 e 12 da Res. Conama 237/97).

Há casos, entretanto, em que a legislação federal prevê a exigência do processo de
licenciamento ambiental clássico ou do EIA/RIMA como estudo ambiental obrigatório (v.g. As 16 atividades listadas na Resolução CONAMA 01/86, atividades situadas em as Áreas de Proteção Ambiental - Resolução CONAMA 10/88; atividades desenvolvidas em um raio de dez quilômetros de unidades de conservação - Resolução CONAMA 13/90; atividades listadas no Anexo da Resolução CONAMA 237/97; atividades potencialmente degradadoras do patrimônio espeleológico - Resolução CONAMA 347/04). Nessas hipóteses, não podem os Estados ou os Municípios dispensarem o licenciamento ou os estudos ambientais completos, sob pena de afronta à Constituição Federal e malferimento ao princípio do due process ambiental. Como bem ressalta o Prof. Paulo Affonso Leme Machado3:
Não invade a autonomia dos Estados o estabelecimento dessas normas e critérios pelo CONAMA, pois a “proteção do meio ambiente” é de competência concorrente da União e dos Estados (art. 24, VI, da CF) e à União está reservado o estabelecimento de “normas gerais” (art. 24, § 1o. da CF). Como assinala com acuidade a Profa. Odete Medauar,: “Se a Constituição Federal atribui competência à União para editar normas gerais sobre certa matéria, determina, em decorrência, que tais disposições fixadas em lei federal hão de ser observadas pelos Estados e Municípios, sem que se cogite, no caso, de qualquer interferência ou desrespeito à autonomia dos Estados-membros ou Municípios.
...
A intervenção do Poder Público estadual está integrada na matéria da Administração estadual. Entretanto, a legislação federal – no que concerne às normas gerais – é obrigatória para todos os Estados... Desconhecer ou não aplicar integralmente ou somente aplicar de forma parcial a legislação federal implica para os estados o dever deles mesmos anularem a autorização concedida ou de pedir a tutela do Poder Judiciário para decretar a anulação.

Álvaro Luiz Valery Mirra4 ensina:

Assim, o que se conclui é que as normas federais que disciplinam o estudo de impacto ambiental – Lei 6938/1981, Decreto n. 99.274/1990 e Resolução CONAMA 001/1986 do CONAMA – são, efetivamente, em sua integralidade e em todos os seus aspectos, normas gerais e, por se mostrarem compatíveis com a previsão constitucional do art. 24, § 1º. da Constituição de 1988, não podem ser contrariadas pelas normas dos Estados e Municípios para o fim de reduzir o grau de proteção do meio ambiente. Por via de consequência, a dispensa pela legislação estadual ou municipal de determinadas atividades da realização do EIA, que pela regulamentação federal é de exigência obrigatória nessas hipóteses, é providência vedada igualmente pelo sistema constitucional em vigor.

Comungam de idêntico entendimento Guilherme José Purvin de Figueiredo e Paulo de Bessa Antunes5.
Ricardo Manuel de Castro, por derradeiro, enfatiza6:

Se a norma federal impõe a realização de Estudo Prévio de Impacto Ambiental, não é lícito ao Poder Público Estadual ou Municipal, direta ou indiretamente, dispensá-lo.
...
Exigi-lo ou não, longe de ser mera faculdade do administrador, constitui dever inafastável para o licenciamento das atividades modificadoras do meio ambiente.

Em Minas Gerais, a Legislação Estadual (art. 8º da Lei 7772/80, com redação dada pelo art. 16 da Lei nº 15.972, de 12/1/2006) prevê no capítulo atinente ao “Controle das Fontes Poluidoras” os instrumentos do Licenciamento Ambiental e da Autorização Ambiental de Funcionamento como ferramentas para a prevenção e controle de degradações ambientais.
Por seu turno, o Decreto 44844/2008 estabelece que compete ao COPAM estabelecer, por meio de Deliberação Normativa, os critérios para classificação dos empreendimentos ou atividades efetiva ou potencialmente poluidores ou degradadores do meio ambiente, especificando quais serão passíveis de Licenciamento Ambiental ou de Autorização Ambiental de Funcionamento – AAF (art. 3º).

Ainda de acordo com o mesmo Decreto, entende-se por formalização do processo de Licenciamento Ambiental e de AAF a apresentação do respectivo requerimento, acompanhado dos documentos, projetos e estudos ambientais exigidos pelo órgão ambiental competente (art. 8º - grifo nosso).

Ou seja, o Decreto Estadual (até mesmo porque não poderia ser diferente) exige para a
formalização do processo de Autorização Ambiental de Funcionamento a apresentação de estudos ambientais, cuja definição e alcance se encontra no art. 1º., III, da Resolução CONAMA 237/97.

Entretanto, a DN 74/2004 – violando não só a própria normatização estadual de hierarquia superior, mas também a legislação federal já citada, exigiu para a concessão da AAF tão somente:

a) Cadastro iniciado através de Formulário Integrado de Caracterização do Empreendimento preenchido pelo requerente;
b) Termo de responsabilidade, assinado pelo titular do empreendimento e Anotação de Responsabilidade Técnica ou equivalente do profissional responsável.
c) Autorização ambiental para Exploração Florestal – APEF e de Outorga de Direito de Uso de Recursos Hídricos.
Ou seja, a AAF – conquanto rotulada pela legislação estadual como um instrumento de
controle das fontes de poluição e degradação ambiental – não se presta a tanto já que sua concessão não pressupõe os mínimos e exigíveis estudos de impacto ambiental, ainda que simplificados (v.g. RAIAS). Como salienta Herman Benjamin:

O princípio da legalidade, na órbita do licenciamento ambiental, significa que o administrador, em hipótese alguma, pode se desviar da lei ou dos princípios especiais que regem a matéria. É, na palavra de Renato Alessi, a ‘conformità allá legge’, ou seja, à lei ambiental. Consubstancia-se na exigência de que o ato sirva à fieldade o objetivo legal. E esse objetivo legal é a proteção do meio ambiente.
...
O princípio da obrigatoriedade reza que o EIA não se encontra, essencialmente, no âmbito do poder discricionário da Administração. Ou seja, a aprovação do EIA é pressuposto indeclinável para o licenciamento da atividade. A regra é a elaboração do EIA, a exceção sua dispensa. 7

Resta evidente que a DN 74/2004 (nos casos em que pode ser legalmente aplicada por inexistir exigência federal de licenciamento ambiental clássico) viola a própria legislação estadual ao não exigir a apresentação de quaisquer estudos ambientais capazes de avaliar previamente os impactos decorrentes do empreendimento.

Não bastasse isso, a DN COPAM 74/2004 possibilita o funcionamento com base em mera AAF de uma série de atividades para as quais a normatização federal exige expressamente a elaboração de EIA/RIMA e a sujeição ao processo de licenciamento ambiental clássico8.

Uma dessas atividades, por exemplo, é a lavra de minérios, tratada pelas Resoluções CONAMA 01/86, 09/90 10/90 e 237/97 (que exigem expressamente o licenciamento
ambiental clássico), e cujo potencial degradador foi reconhecido até mesmo pela própria Constituição Federal (art. 225, § 2º.)9.

A inconstitucionalidade de tal diploma transparece evidente, sendo de se destacar que
sobre matéria símile já decidiu o Supremo Tribunal Federal:R 396541Ementa e Rel atório ( 2)

CONSTITUCIONAL. MEIO AMBIENTE. ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL. EIA. CF art. 225, § 1º, IV. Cabe ao Poder Público exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo de impacto ambiental, a que se dará publicidade. Considerando-se a importância do EIA como poderoso instrumento preventivo ao dano ecológico e a consagração, pelo constituinte, da preservação do meio ambiente como valor e princípio, conclui-se que a competência conferida ao Município para legislar em relação a esse valor só será legítima se, no exercício dessa prerrogativa, esse ente estabelecer normas capazes de aperfeiçoar a proteção à ecologia, nunca, de flexibilizá-la ou abrandá-la. (STF AgRg no RE 396.541-7 – RS – Rel. Min. Carlos Veloso. J. 14.06.2005. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 182, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL. CONTRAIEDADE AO ARTIGO 225, § 1º, IV, DA CARTA DA REPÚBLICA. A norma impugnada, ao dispensar a elaboração de estudo prévio de impacto ambiental no caso de áreas de florestamento ou reflorestamento para fins empresariais, cria exceção incompatível com o disposto no mencionado inciso IV do § 1º do artigo 225 da Constituição Federal. Ação julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade do dispositivo constitucional catarinense sob enfoque. (STF - ADI 1086 / SC - SANTA CATARINA - Rel. Min. ILMAR GALVÃO. J. 10/08/2001).

O estado de coisas presenciado em Minas Gerais evidencia uma situação perigosa tanto para os empreendedores que se valem do instrumento da AAF quanto para o poder público, na medida em que ambos podem ser responsabilizados pelos danos decorrentes de tal ilicitude e omissão, em âmbito cível, administrativo e criminal.

A recente constatação da completa destruição, na Serra da Moeda, de uma cavidade natural subterrânea com vestígios arqueológicos por uma grande mineradora que operava com base em meras AAFs expedidas pelo Estado de Minas Gerais (quando no caso seria necessário EIA/RIMA e Licenciamento Ambiental), gerando enorme autuação administrativa pelo IBAMA, propositura de ação civil pública pelo Ministério Público contra o empreendedor e órgãos estaduais, além da requisição de inquérito policial para apuração de crime ambiental, é um exemplo marcante (mas não solitário) de como essa conta pode sair cara.

A par disso, a sociedade mineira – como de resto todas as gerações presentes e futuras–
estão sendo privadas de cuidados mínimos com a proteção de um direito que não tem donos nem fronteiras: o meio ambiente ecologicamente equilibrado.
A urgente adequação da DN 74/2004 ao princípio da prevenção e sua compatibilização com as normativas federais sobre a matéria são, sem dúvida, medidas essenciais e impostergáveis para a correção e reparação desses sérios equívocos.

1 BENJAMIN, Antônio Herman V.. Os princípios do estudo de impacto ambiental como limites da discricionariedade
administrativa. Revista Forense, vol. 317. p. 30.
Página | 2
2 Vide: SÁNCHEZ, Luis Enrique. Avaliação de Impacto Ambiental. Conceitos e Métodos. São Paulo: Oficina de Textos, 2006 e
BENJAMIN, Antônio Herman V.. Os princípios do estudo de impacto ambiental como limites da discricionariedade
administrativa. Revista Forense, vol. 317. p 25-45
3 Direito Ambiental Brasileiro, 9. ed. Malheiros. 2001. p. 201-202 e 254.
4 Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. 4. Ed. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira. 2008. p. 90.
5 Hipóteses de exigibilidade de Estudo de Impacto Ambiental. Revista de Direitos Difusos. São Paulo; APRODAB. 2006. Vol.
35, p. 51.
6 Caracteriza ato de improbidade administrativa a dispensa de apresentação de EIA/RIMA em obras potencialmente
degradadoras do meio ambiente. Anais do III Congresso do Ministério Público do Estado de São Paulo. 24 a 27 de agosto de
2005. vol. 1, São Paulo, 2006. p. 285
Página | 4
7 Op. Cit. p. 38 e 40.
8 CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PUBLICA. MEIO-AMBIENTE. 1 - A elaboração de estudo com relatório de impacto ambiental
constituem exigência constitucional para licenciamento de atividades potencialmente causadoras de significativa degradação
do meio-ambiente. 2 - A Resolução 001/86 do Conama apenas prescinde do eia/rima com relação a projetos urbanísticos de
área inferior a 100 há. 3 - O relatório de viabilidade ambiental não é idôneo e suficiente para substituir o estudo de impacto
ambiental e respectivo relatório. (TRF 5ª R.; AC 50495; Proc. 9405173820; CE; Segunda Turma; Rel. Juiz José Delgado; Julg.
02/08/1994; DJU 23/09/1994). No mesmo sentido o TJMG tem reconhecido a nulidade das autorizações ambientais
concedidas de tal forma. Ex: AGRAVO N° 1.0092.07.011326-8/001.
9 RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. ATIVIDADE DE EXPLORAÇÃO DE MINERAÇÃO. POSSIBILIDADE DE CAUSAR
DANOS AO MEIO AMBIENTE. NECESSIDADE DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO OU DA CAUTELA.
Tratando-se de exploração de atividade de mineração revelando-se passível de causar danos ao meio ambiente deve-se obter
licenciamento ambiental para seu exercício atendendo-se ao princípio da proteção ou da cautela. (TJMT; RAI 15646/2007;
Alta Floresta; Segunda Câmara Cível; Relª Desª Maria Helena Gargaglione Póvoas; Julg. 12/12/2007; DJMT 16/01/2008; Pág.
17).
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IRREGULARIDADE EM ATIVIDADE DE MINERAÇÃO. LICENCIAMENTO AMBIENTAL.
OBRIGATORIEDADE DE APRESENTAÇÃO DE ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL E RELATÓRIO DE IMPACTO SOBRE O MEIOAMBIENTE.
Obrigatoriedade de apresentação de Estudo de Impacto Ambiental - EIA e Relatório de Impacto sobre o Meio
Ambiente - RIMA, para as atividades consideradas efetiva ou potencialmente causadoras de significativa degradação
ambiental (artigo 3º da Resolução CONAMA 237/97). Os pedidos de licença ambiental de empreendimentos minerários
devem ser protocolizados na CETESB (artigo 4º, Resolução SMA nº 4/99). (TRF 3ª R.; AC 1062702; Proc. 2003.61.04.001816-
9; SP; Relª Juíza Fed. Conv. Mônica Nobre; DEJF 25/03/2009; Pág. 929).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE LIBERA AS ATIVIDADES DE MINERAÇÃO POR 120 DIAS. IMPOSSIBILIDADE.
PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. Perícia judicial não equivale ao eia/rima. procedimentos diversos. agravo de instrumento
desprovido. (TRF 4ª R.; AI 2008.04.00.028193-0; SC; Terceira Turma; Rel. Des. Fed. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz;
Julg. 21/10/2008; DEJF 05/11/2008; Pág. 333).

(*) Coordenador da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais. Especialista em Direito Ambiental (Universidade Gama Filho). Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais (Universidad del Museo Social Argentino). Professor de Direito Processual Ambiental - Nível de Pós Graduação. CAD – Belo Horizonte. Autor do livro: Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro (Del Rey, 2006)

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O preço de não escutar a natureza, por Leonardo Boff

O cataclisma ambiental, social e humano que se abateu sobre as três cidades serranas do Estado do Rio de Janeiro - Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo -, na segunda semana de janeiro de 2011, com centenas de mortos, destruição de regiões inteiras e um incomensurável sofrimento dos que perderam familiares, casas e todos os haveres tem como causa mais imediata as chuvas torrenciais, próprias do verão, a configuração geofísica das montanhas, com pouca capa de solo sobre o qual cresce exuberante floresta subtropical, assentada sobre imensas rochas lisas que por causa da infiltração das águas e o peso da vegetação provocam freqüentemente deslizamentos fatais. 
Culpam-se pessoas que ocuparam áreas de risco, incriminam-se políticos corruptos que distribuíram terrenos perigosos a pobres, critica-se o poder público que se mostrou leniente e não fez obras de prevenção, por não serem visíveis e não angariarem votos. Nisso tudo há muita verdade. Mas nisso não reside a causa principal desta tragédia avassaladora.
A causa principal deriva do modo como costumamos tratar a natureza. Ela é generosa para conosco, pois nos oferece tudo o que precisamos para viver. Mas nós, em contrapartida, a consideramos como um objeto qualquer, entregue ao nosso bel-prazer, sem nenhum sentido de responsabilidade pela sua preservação nem lhe damos alguma retribuição. Ao contrário, tratamo-la com violência, depredamo-la, arrancando tudo o que podemos dela para nosso benefício. E ainda a transformamos numa imensa lixeira de nossos dejetos.
Pior ainda: nós não conhecemos sua natureza e sua história. Somos analfabetos e ignorantes da história que se realizou nos nossos lugares no percurso de milhares e milhares de anos. Não nos preocupamos em conhecer a flora e a fauna, as montanhas, os rios, as paisagens, as pessoas significativas que aí viveram, artistas, poetas, governantes, sábios e construtores.
Somos, em grande parte, ainda devedores do espírito científico moderno que identifica a realidade com seus aspectos meramente materiais e mecanicistas sem incluir nela, a vida, a consciência e a comunhão íntima com as coisas que os poetas, músicos e artistas nos evocam em suas magníficas obras. O universo e a natureza possuem história. Ela está sendo contada pelas estrelas, pela Terra, pelo afloramento e elevação das montanhas, pelos animais, pelas florestas e pelos rios. Nossa tarefa é saber escutar e interpretar as mensagens que eles nos mandam. Os povos originários sabiam captar cada movimento das nuvens, o sentido dos ventos e sabiam quando vinham ou não trombas d’água.  Chico Mendes com quem participei de longas penetrações na floresta amazônica do Acre sabia interpretar cada ruído da selva, ler sinais da passagem de onças nas folhas do chão e, com o ouvido colado ao chão, sabia a direção em que ia a manada de perigosos porcos selvagens. Nós desaprendemos tudo isso. Com o recurso das ciências lemos a história inscrita nas camadas de cada ser. Mas esse conhecimento não entrou nos currículos escolares nem se transformou em cultura geral. Antes, virou técnica para dominar a natureza e acumular.
No caso das cidades serranas: é natural que haja chuvas torrenciais no verão. Sempre podem ocorrer desmoronamentos de encostas.  Sabemos que já se instalou o aquecimento global que torna os eventos extremos mais freqüentes e mais densos. Conhecemos os vales profundos e os riachos que correm neles. Mas não escutamos a mensagem que eles nos enviam que é: não construir casas nas encostas; não morar perto do rio e preservar zelosamente a mata ciliar. O rio possui dois leitos: um normal, menor, pelo qual fluem as águas correntes e outro maior que dá vazão às grandes águas das chuvas torrenciais. Nesta parte não se pode construir e morar.

Estamos pagando alto preço pelo nosso descaso e pela dizimação da mata atlântica que equilibrava o regime das chuvas. O que se impõe agora é escutar a natureza e fazer obras preventivas que respeitem o modo de ser de cada encosta, de cada vale e de cada rio.
Só controlamos a natureza na medida em que lhe obedecemos e soubermos escutar suas mensagens e ler seus sinais. Caso contrário teremos que contar com tragédias fatais evitáveis.
Leonardo Boff é filósofo e teólogo

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

"Deus Perdoa. A Natureza, não"

Estas certamente não seriam as cenas que gostaríamos de ver logo no início do ano, nem em qualquer época dele. Mas há muito trazemos conosco a expressão: "Deus perdoa. A Natureza, não."

O artigo abaixo, do jornalista Ricardo Kotscho, pinçado da Revista Carta Capital on line, reforça essa tese. E ajuda a compreender o que as cenas fortes e angustiantes da semana, especialmente na região serrana do Estado do Rio, ilustram sem alguma explicação que possa nos resignar...

Nísio Miranda.

A tragédia do Rio: terra em colapso, por Ricardo Kotscho

Posted By Balaio do Kotscho On 13 de janeiro de 2011 @ 10:11 In Destaques CartaCapital |

[1] Foto: Agência Brasil

O homem abusou da natureza, foi longe demais nas suas ambições e na sua irresponsabilidade, e a natureza está se vingando

SÃO SEBASTIÃO _ Estou vendo agora no Jornal Nacional as terríveis imagens da tragédia na Região Serrana do Rio. De tudo o que foi mostrado de mais chocante na caudalosa e competente cobertura da TV Globo, ficaram na minha cabeça as palavras balbuciadas por um menino flagelado: “Parece que o mundo está acabando…”

É exatamente isto o que sinto faz algum tempo. O homem abusou da natureza, foi longe demais nas suas ambições e na sua irresponsabilidade, e a natureza está se vingando. Foi ontem, em São Paulo; hoje, no Rio; dias atrás, nas enchentes na Austrália, nas torrentes de neve nos Estados Unidos e na Europa. Cada hora num lugar, a terra está entrando em colapso.

Nas ruas das grandes cidades cada vez mais congestionadas de automóveis ou nos aeroportos superlotados de gente mundo afora, nos espigões que brotam sem parar onde antes conviviam pequenas casas geminadas, parece que o mundo ficou pequeno para tanta gente, tantas máquinas, tanto consumo, e não suporta mais carregar este peso. Agora, não adianta procurar culpados, acusar governantes, reclamar da falta de planejamento urbano e de cuidados com o meio ambiente. Já foi.

Somos todos responsáveis, somos todos vítimas. É uma estupidez querer fulanizar, partidarizar ou politizar as tragédias que se multiplicam pelo Brasil e pelo resto do planeta. Nesta quarta-feira, por uma ironia do destino, foi lembrado no mundo todo o terremoto que abalou um ano atrás o pobre Haiti, transformado num grande acampamento de miseráveis sobreviventes.

Na rica região de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, o belíssimo cenário europeu das terras cariocas, que quase foi varrido do mapa pelas águas, vimos o que pode acontecer a qualquer hora, em qualquer lugar, independentemente da condição social dos moradores, se cada um de nós não for capaz de perceber o perigo que estamos todos correndo, e fizer alguma coisa para evitar novas tragédias.

Não sei se foi por alguma premonição. Mas, no no último post que escrevi no ano passado, alguns de vocês devem se lembrar, sugeri aqui mesmo no Balaio que a gente fizesse de 2011 o “Ano Menos”, baixando um pouco a bola para podermos continuar jogando.

Resta saber o que é possível fazer e se ainda dá tempo.


Article printed from CartaCapital: http://www.cartacapital.com.br

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

2011: Vamos fazer o melhor novamente!

Mais um ciclo de nossas vidas se inicia... Após as festas, as manifestações afetuosas dos amigos, os desejos de sempre melhores dias e a esperança - essa persistente - renovada, voltamos ao caminho: a percorrê-lo e a construí-lo. Meu desejo de saúde, paz, inquietude construtiva e nossa MÃE-TERRA, bem como todos os seus filhos, bem cuidados, amados e em harmonia.

Espero ter mais tempo para este nosso espaço, para compartilhar com os que conosco caminham todas as boas novas que a nós vierem!

Pelo bem e a perpetuação da Vida: a que é e a que será!

Feliz e profícuo Ano Novo para todos nós!

Nísio Miranda.