segunda-feira, 18 de abril de 2011

Paracatu e o voo do pica-pau, por Almir Paraca (*)


Nas discussões do Plano de Desenvolvimento Sustentável de Paracatu, em diversas ocasiões, salientei a necessidade imperiosa de se conhecer a história do município, para despertar a consciência da artificialidade e transitoriedade da dinâmica sócio-econômica produzida pela mineração. Para ilustrar o movimento sazonal, oscilatório – no popular: o sobe e desce de uma determinada variável ao longo de tempo, como vem acontecendo com a dimensão sócio-econômica da cidade de Paracatu, ao longo da sua história, utilizo uma imagem imortalizada pelo Guimarães Rosa: “pica-pau voa é duvidando do ar”. Todos aqueles que já tiveram o privilégio de observar o voo do pica-pau, o majestoso pássaro brasileiro em sua trajetória oscilatória, que lembra um movimento de onda, percebem a exatidão da imagem para traduzir as variações sócio-econômicas da história de Paracatu. A cidade nasce no ciclo do ouro, nos tempos do Brasil colônia e da escravidão e, apesar da abusiva transferência de renda para a metrópole portuguesa (situação que hoje se repete como farsa histórica na relação com a mineradora canadense Kinross), assiste a um período de vigor e pujança sócio-econômica, transformando-se num importante núcleo urbano, com sua elite econômica e cultural adotando elevado padrão de vida copiado das elites europeias.

Como é próprio da atividade minerária, esta se esgotou e, com ela, a elevada dinâmica socioeconômica, que assiste a um longo período de depressão e decadência. Somente com a construção da capital federal, no sertão do país, é que Paracatu começa a acordar da sua dormência indolente e começa a se levantar.

Um novo impulso ocorre nos anos 1970, com os projetos de ocupação do cerrado, acompanhado do pacote tecnológico que introduz o que veio a ser denominado de agronegócio, modernizando as relações sócio-produtivas no meio rural, implantando os assentamentos rurais empresariais, em substituição aos latifúndios improdutivos e à economia de subsistência – até então reinantes. Essa trajetória ascendente recebe nova energia com o retorno da mineração nos anos 1980, que passa rapidamente do garimpo artesanal para a exploração pelas grandes e predatórias mineradoras multinacionais.

Mais recentemente, a dinâmica socioeconômica local foi impactada positivamente pelos investimentos nos empreendimentos de ensino técnico e superior, em sintonia com a exigência, pelo mercado, de mão-de-obra qualificada para a demanda de expansão e desenvolvimento da economia nacional.

Se, hoje, no município, vivemos um momento de exuberância econômica, com forte crescimento dos setores de serviço e comércio e uma, ainda tímida, industrialização – derivados dos fatores acima descritos – é fundamental recuperar a visão histórica e projetá-la para o futuro. A visão histórica rompe com o fatalismo e recupera a noção de processo, de construção; e atualiza a percepção da forte participação da mineração na economia local e, portanto, dos grandes impactos que virão com a eminente exaustão dos estoques minerários.
A já evocada imagem do voo do pica-pau nos mostra que o município, hoje, encontra-se no topo de um ciclo ascendente e, ainda, que o esgotamento da atividade minerária provocará, como no passado conhecido, um novo ciclo descendente que, só não terá similar impacto negativo, caso tenhamos aprendido a lição da história e, previdentes, adotarmos medidas que promovam o desenvolvimento sustentável local.

No debate em curso tenho, insistentemente, defendido a elaboração e a implementação do plano de desenvolvimento sustentável, com intensa participação dos diversos segmentos sociais. Um plano que promova o incremento das vocações locais, a partir das energias endógenas e diversifique as atividades produtivas: condições decisivas para diminuir os impactos negativos do fim da mineração no município.

O voo do pica-pau, ao resgatar o aprendizado da nossa história, nos chama a todos à responsabilidade pelo futuro comum. No passado, o final do primeiro ciclo do ouro levou à decadência – certamente por ignorância e falta de alternativas. Hoje devemos nos preparar, preventivamente, para encarar, de frente, o fim óbvio do atual ciclo do ouro, tanto do ponto de vista ambiental, quanto do socioeconômico.

Insisto em não perder as esperanças. A natureza ensina e somos aprendizes. Que voe o pica-pau e a consciência se eleve.

(*) Almir Paraca é deputado estadual à Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais pelo Partido dos Trabalhadores.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

UM NOVO CREDO – por Frei Betto

Creio no Deus desaprisionado do Vaticano e de todas a religiões existentes e por existir. Deus que precede todos os batismos, pré-existe aos sacramentos e desborda de todas as doutrinas religiosas. Livre dos teólogos, derrama-se graciosamente no coração de todos, crentes e ateus, bons e maus, dos que se julgam salvos e dos que se crêem filhos da perdição, e dos que são indiferentes aos abismos misteriosos do pós-morte.
 
Creio no Deus que não tem religião, criador do Universo, doador da vida e da fé, presente em plenitude na natureza e nos seres humanos. Deus ourives em cada ínfimo elo das partículas elementares, da requintada arquitetura do cérebro humano ao sofisticado entrelaçamento do trio de quarks.

Creio no Deus que se faz sacramento em tudo que aproxima, atrai, enlaça, abraça e une – o amor. Todo amor é Deus e Deus é o real. Em se tratando de Deus, bem diz Rumî, não é o sedento que busca a água, é a água que busca o sedento. Basta manifestar sede e a água jorra.

Creio no Deus que se faz refração na história humana e resgata todas as vítimas de todo poder capaz de fazer o outro sofrer. Creio em teofanias permanentes e no espelho da alma que me faz ver um Outro que não sou eu. Creio no Deus que, como o calor do sol, sinto na pele, sem no entanto conseguir fitar ou agarrar o astro que me aquece.

Creio no Deus da fé de Jesus, Deus que se aninha no ventre vazio da mendiga e se deita na rede para descansar dos desmandos do mundo. Deus da Arca de Noé, dos cavalos de fogo de Elias, da baleia de Jonas. Deus que extrapola a nossa fé, discorda de nossos juízos e ri de nossas pretensões; enfada-se com nossos sermões moralistas e diverte-se quando o nosso destempero profere blasfêmias.

Creio no Deus que, na minha infância, plantou uma jabuticabeira em cada estrela e, na juventude, enciumou-se quando me viu beijar a primeira namorada. Deus festeiro e seresteiro, ele que criou a lua para enfeitar as noites de deleite e as auroras para emoldurar a sinfonia passarinha dos amanheceres.

Creio no Deus dos maníacos depressivos, das obsessões psicóticas, da esquizofrenia alucinada. Deus da arte que desnuda o real e faz a beleza resplandecer prenhe de densidade espiritual. Deus bailarino que, na ponta dos pés, entra em silêncio no palco do coração e, soada a música, arrebata-nos à saciedade.
Creio no Deus do estupor de Maria, da trilha laboral das formigas e do bocejo sideral dos buracos negros. Deus despojado, montado num jumento, sem pedra onde recostar a cabeça, aterrorizado pela própria fraqueza.

Creio no Deus que se esconde no avesso da razão atéia, observa o empenho dos cientistas em decifrar-lhe os jogos, encanta-se com a liturgia amorosa de corpos excretando sumos a embriagar espíritos.

Creio no Deus intangível ao ódio mais cruel, às diatribes explosivas, ao hediondo coração daqueles que se nutrem com a morte alheia. Misericordioso, Deus se agacha à nossa pequenez, suplica por um cafuné e pede colo, exausto frente à profusão de estultices humanas.

Creio sobretudo que Deus crê em mim, em cada um de nós, em todos os seres gerados pelo mistério abissal de três pessoas enlaçadas pelo amor e cuja suficiência desbordou nessa Criação sustentada, em todo o seu esplendor, pelo frágil fio de nosso ato de fé.

Frei Betto é escritor, autor de “A Obra do Artista – uma visão holística do Universo” (Ática), entre outros livros.